por Camila Crespi Castro[i] e Cybelle Guedes Campos [ii] | Artigo publicado originalmente pelo portal Conjur
Para os profissionais que atuam no Direito de Insolvência, o primeiro trimestre do ano de 2024 foi tomado por incertezas e obscuridades relacionadas à longevidade dos instrumentos de reestruturação empresarial. A insegurança jurídica é algo latente e que prejudica nosso sistema, principalmente sob o ponto de vista econômico, seja pela alta inadimplência e uso indevido dos procedimentos de recuperação judicial, seja pelos efeitos econômicos que nosso país tem sentido desde os últimos acontecimentos a nível global, o qual amplia o endividamento das empresas.
Parte da insegurança que a comunidade jurídica e o mercado vêm sentindo em relação à continuidade e segurança jurídica das ferramentas de reestruturação (recuperação extrajudicial, recuperação judicial e falência) se deram em razão do Projeto de Lei 3/2024 proposto pelo Governo Federal que altera substancialmente o procedimento falimentar previsto na Lei 11.101/05, que inicialmente trazia como objetivo primordial a melhoria do índice de eficiência e celeridade dos procedimentos de falência no Brasil, por meio da criação de uma nova figura, denominada gestor fiduciário, que passaria a ser eleito em Assembleia Geral pelos credores da massa falida, bem como por meio da apresentação de uma plano de falência. Segundo a proposta, a criação das figuras do “gestor fiduciário” e do “plano de falência de realização dos ativos” permitiria que os credores detivessem maior controle e previsibilidade sobre o processo, recebendo seus créditos ou o equivalente a eles no menor tempo possível, o que sabe-se que na prática é algo inviável.
Referido Projeto de Lei, inicialmente, recebeu críticas por diversos profissionais, dentro os quais destacam-se os integrantes especializados do Poder Judiciário que atuam diariamente com processos dessa natureza. Resguardadas às críticas que já foram por nós realizadas em diversos meios ao texto original do Projeto de Lei, o que talvez tenha causado maior impacto na comunidade jurídica fora o regime de urgência instituído em sua tramitação perante a Câmara dos Deputados, pela qual trava-se a pauta legislativa e leva-se rapidamente à votação das propostas ali realizadas, sem amplo debate sobre os desdobramentos e consequência no mercado econômico. Diversamente do que fora proposto pelo Governo através do PL 3/24, sabe-se que a proposta ali elaborada poderia causar prejuízos muito maiores e sem precedentes a um procedimento já estruturado pela construção doutrinária e jurisprudencial e muito bem-posto quando da reforma da Lei, através da Lei 14.112/20. Ou seja, nenhuma reforma ao procedimento falimentar, neste momento, seria necessária.
Na Câmara dos Deputados, o Projeto teve sua relatoria direcionada à Deputada Dani Cunha que, muito embora ciente dos impactos nefastos do Projeto sobre todos os institutos de reestruturação das empresas em crise, surpreendeu a todos no último dia 16, apresentando um texto substitutivo, ainda mais prejudicial àquele inicialmente proposto.
Pela leitura do novo texto, justificado sob o pretexto de moralizar os processos desta natureza, é flagrante o ataque à figura dos administradores judiciais, fato este completamente injustificado e que também passou a ser objeto de diversas análises e críticas pela classe ali representada e demais operadores do direito.
Mas também merece destaque e atenção, o fato de que pela leitura das alterações propostas, implicitamente percebe-se clara tentativa de beneficiamento de uma classe privilegiada de credores, em detrimento de todo microssistema de insolvência brasileiro, em que ‘as regras do jogo’ passariam a ser ditadas em prol de agentes com poderio econômico, e nitidamente interessados em ativos de valores relevantes existentes nos processos de recuperação judicial e falência.
Ocorre que, ao permitir que os credores possam escolher um gestor para administrar a massa falida e criar um plano de falência, agilizando, assim, todo o processo deve-se ter claro que não são todos os credores que poderão participar de tal estratégia no processo falimentar.
Daí dizer-se que há nítido privilégio às classes de credores que são titulares da maioria do crédito. Ou seja, o agente escolhido será pelos credores titulares de maior poder econômico, o qual nitidamente fere o princípio da par conditio creditorium, que é latente no processo concursal e falimentar.
Apesar do PL 3/24 trazer a possibilidade de os “credores” terem maior poder de gestão dos processos de falência, a bem da verdade é que o grupo formado pelos detentores dos maiores créditos e não a totalidade. Nítido o retrocesso legislativo. Ainda, quanto ao empreendedorismo no país muito se defende, mas na prática e no Projeto de Lei 3/2024, a figura do empresário é deixada de lado, na hipótese de ser falido toda sua voz é extirpada do processo, como se a este agente se devesse toda morosidade e ineficiência dos processos; assim como é totalmente desconsiderado o papel das empresas na economia do país, na medida, em que a estas não são asseguradas garantias mínimas de utilização dos mecanismos de reestruturação.
Como incentivar o empreendedorismo em um país (que é palco constante de crise econômica e política) em que minimamente não se pode garantir às suas empresas a utilização de ferramentas para auxílio, na hipótese de crise? Como incentivar os empresários a permanecerem com suas empresas em solo nacional; e, ainda, como incentivar investimentos externos, quando não se tem um cenário de segurança jurídica?
O aprimoramento da Lei será sempre bem-vindo, mas deve vir acompanhado de amplo debate da sociedade civil e da comunidade jurídica especializada, com a oitiva de todos envolvidos no sistema, e nesse aspecto, identifico que há falha no procedimento que foi adotado, primeiro pelo fato da recente alteração legislativa promovida pela Lei 14.112/2020 na Lei 11.101/2005, cujos seus resultados não foram sequer aferidos; e, segundo, por não ter tido qualquer debate, possibilitando o posicionamento daqueles que realmente fazem parte do dia a dia da insolvência, para que juntos pudessem estabelecer melhores soluções ao processo, sem defesa de um viés ou outro, mas em prol do mercado e do fomento ao empreendedorismo que move o país.
Por fim, tanto o texto originário como o substitutivo ao Projeto de Lei 3/2024, abrem espaço para manipulação de grandes credores (dentre eles o próprio Fisco, ora credor privilegiado no cenário falimentar, tendo em vista a prioridade no pagamento dos tributos), notadamente quanto ao cenário de aprovação do plano de recuperação judicial, levando à quebra, justamente para que se obtenham vantagens na indicação do gestor fiduciário e na aprovação do plano de falência, retirando a possibilidade de outros credores participarem ativamente e receberem os seus créditos a que detém direto.
As disposições do Projeto de Lei, portanto, dão espaço a um procedimento manejado, que representa extremo perigo ao mercado, e por esta razão deveria ser amplamente discutido, sob pena de retirar a credibilidade de todos os mecanismos de reestruturação disponíveis atualmente às empresas em crise, em retrocesso a todas às mudanças positivas atingidas desde a entrada em vigor da Lei 11.101/2005.
[i] Dra. Camila Crespi – Advogada atuante nas áreas de Recuperação de Empresas e Falimentar, Direito Empresarial Internacional. Pós-Graduada em Dto. Constitucional e Reestruturação Empresarial pela FGV-SP. Membro da INSOL International, IWIRC Brazil e Vice-Presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB/SP (triênio 2022/2024).
[ii]Cybelle Guedes Campos: Sócia e Advogada do Moraes Junior Advogados, experiência na área empresarial e de insolvência há mais de 19 anos. Especialista em Reestruturação, em Recuperação Judicial e Falências pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade São Judas Tadeu (USJT). MBA em Administração Legal pela Escola Paulista de Direito (EPD). Especialista em Insolvência e Recuperação Judicial comparada com ênfase na Legislação Britânica no Corpus Christi College da Oxford University. Especialista em Recuperação Judicial e Direito comparado pela Universidade Tor Vergatá (Itália). Membro efetivo regional da Comissão Especial de Estudos de Recuperação Judicial e Falências da OAB/São Bernardo do Campo. Membro efetivo regional da Comissão Especial de Estudos de Recuperação Judicial e Falências da OAB/Campinas. Membro efetivo da Comissão de Resolução de Conflitos da OAB/São Paulo. Membro efetivo da Comissão da Mulher Advogada da OAB/São Paulo. Membro da Comissão de Direito Falimentar do IBRADEMP. Membro da Comissão Permanente de Estudos de Direito Falimentar e Recuperacional do IASP. Membro da Coordenadoria de Práticas Colaborativas da Câmara Especial de Resolução de Conflitos em Reestruturação de Empresas (CamCMR). Membro do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial (CMR). Membro do TMA Brasil.